
CAPOEIRA SEM FRONTEIRAS
do chão da senzala para o mundo!
Ao abordar a origem da capoeira, é impossível ignorar o contexto de dor, deslocamento forçado e desumanização vivido por milhões de africanos escravizados durante o tráfico transatlântico. As embarcações que os transportavam, descritas por muitos cronistas e pensadores como verdadeiras “tumbas flutuantes”, não eram apenas meios de locomoção, mas espaços de agonia e ruptura. Ali se dava não apenas a travessia do oceano, mas a transição brutal de mundos: da liberdade à servidão, da dignidade ao cativeiro.
A separação da terra natal significava mais do que o distanciamento geográfico: um exílio espiritual. A África, com suas culturas, línguas e estruturas sociais complexas, tornava-se uma memória sangrante. Mães separadas de filhos, líderes destituídos, linhagens desfeitas: a escravidão aniquilava vínculos e dissolvia identidades. Em seu lugar, instalava-se o vazio da perda, a dor da saudade e o silenciamento de uma história milenar.
A repetição desta tragédia por gerações gerou marcas profundas, inspirando uma necessidade vital de luta pela identidade. A memória coletiva do sofrimento, longe de ser apagada, passou a ser resguardada por gestos, expressões corporais, olhares e símbolos. Foi nesse ambiente hostil, entre senzalas e castigos, que germinou uma forma de expressão que mesclava dissimulação e insurgência: a capoeira.
Essa manifestação que hoje ecoa em todos os continentes, carrega uma ancestralidade marcada pelo luto e pela luta. Mais do que uma simples herança cultural, ela é um grito transgeracional que reafirma a humanidade dos que foram brutalmente desumanizados. Em cada movimento, uma lembrança; em cada roda, um rito de conexão com o passado.
No alvorecer do século XXI, a capoeira transcende as fronteiras do mero folclore para se firmar como um dos mais vibrantes e complexos fenômenos culturais do Brasil, ecoando sua ressonância por todos os continentes. Sua jornada, intrinsecamente ligada à saga da resistência e da inventividade humana, desvela um percurso que vai das senzalas e quilombos, berços de uma luta velada pela liberdade, à consagração global como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, em 2014. Essa trajetória monumental, tecida com os fios da resiliência e da transformação, não é apenas um feito histórico, é a celebração de um legado que ressoa em milhões de pessoas.
A capoeira, por sua própria gênese, carrega as cicatrizes de um passado de opressão. Nascida da necessidade de defesa e expressão em meio à brutalidade da escravidão, foi por séculos estigmatizada e perseguida, vista como manifestação de desordem e criminalidade. No entanto, sua capacidade de adaptação e reinvenção foi notável. Das proibições e prisões, emergiu uma arte que converteu a luta em dança, a malícia em ginga e a estratégia em jogo. Essa metamorfose não apenas garantiu sua sobrevivência, mas forjou seu caráter duradouro e a tornou um símbolo potente de superação. A capoeira do século XXI, portanto, não é apenas um eco do passado, é a materialização de um legado que soube, com astúcia e perseverança, moldar as correntes em passos de dança e a dor em poesia.
No cerne da prática e da filosofia da capoeira reside a roda, um espaço que transcende a mera arena de jogo para se firmar como um verdadeiro espaço sagrado e ritualístico: sua forma circular não é acidental, ela é fundamental para a concentração e fluidez do axé, permitindo que a energia do jogo, da música e dos participantes circule de forma contínua e envolvente. Disposta ao redor do berimbau, que dita o ritmo e o tipo de jogo, a roda é onde a comunidade se encontra, onde o respeito é primordial e onde a ancestralidade pulsa em cada movimento. É dentro desse círculo mágico que se celebram a luta disfarçada em dança, a malícia, a expressão individual e, acima de tudo, a união e a resistência de um povo.
A identidade do capoeirista é visualmente selada pelos trajes e pela corda, elementos carregados de profunda simbologia. O abadá branco, vestimenta tradicional, transcende a mera função prática, evocando a paz, a pureza e uma conexão ancestral com as tradições afro-brasileiras. A corda, por sua vez, é o símbolo mais visível da graduação e do caminho percorrido pelo praticante. Suas cores variam entre os grupos, mas sempre representam estágios de aprendizado, dedicação e reconhecimento. Além da cor, a forma como a corda é utilizada é parte do ritual: ela é amarrada na cintura do capoeirista, com um nó específico que simboliza a união e o compromisso do praticante com a arte e com seu grupo. Para muitos, a forma de amarrar e até a posição do nó podem carregar significados inerentes à linhagem ou à filosofia daquele mestre, reforçando a profundidade cultural para além do mero adorno.
Uma das mais singulares e próprias características da cultura da capoeira é a tradição da nominalização, ou seja, a atribuição de um apelido aos praticantes, frequentemente referidos como "nome de guerra" ou "apelido de capoeira". Longe de ser uma alcunha casual, esse apelido representa uma nova identidade dentro da roda, muitas vezes tornando-se mais reconhecido e significativo do que o nome civil do capoeirista. Esses apelidos são geralmente concedidos pelos mestres, que observam atentamente características físicas, habilidades no jogo, peculiaridades na personalidade ou até mesmo histórias de vida do aluno. É uma forma de batismo cultural, que acolhe o indivíduo na irmandade da capoeira, conferindo-lhe um lugar e um reconhecimento que ecoam a ancestralidade e a oralidade da tradição.
A jornada do capoeirista é pontuada por ritos de passagem de profunda relevância cultural: o batizado e a troca de cordas. O batizado marca a iniciação formal do aluno na capoeira, um momento solene e festivo em que ele recebe sua primeira corda e, em muitos casos, seu apelido. É um verdadeiro rito de acolhimento na comunidade, com a presença de mestres e convidados que celebram a entrada do novo membro. A troca de cordas, por sua vez, simboliza a progressão do capoeirista em seu aprendizado e desenvolvimento. Ambos os eventos são mais do que meras cerimônias de graduação, são celebrações comunitárias ricas em rituais, nas quais a roda se transforma em um palco de demonstrações de técnicas, força e musicalidade, onde o aluno é desafiado por mestres e graduados. Esses ritos reforçam a disciplina, o respeito, a irmandade e o compromisso contínuo com a arte, solidificando os laços que unem a família da capoeira.
A complexidade da capoeira vai além de seus estilos e toques, ela se manifesta também em seus sistemas de graduação que, embora sigam uma lógica de evolução do praticante, variam significativamente de grupo para grupo. Não há um padrão universal de cores de cordas ou de sequência de graduações, o que reflete a autonomia e as filosofias distintas de cada linhagem e mestre. Enquanto alguns grupos utilizam um sistema de cores que remete às cores da bandeira do Brasil, outros podem ter sequências de cores que simbolizam elementos da natureza, fases do aprendizado ou até mesmo a hierarquia interna daquele grupo específico. Essa variedade nas graduações é um testemunho da riqueza e da adaptabilidade da capoeira, mostrando que a jornada do capoeirista é única, embora sempre marcada por etapas de aprimoramento e reconhecimento.
Se a capoeira outrora esteve confinada às margens da sociedade, associada a estereótipos restritivos, o século XXI testemunha uma explosão de inclusão que redefine completamente o perfil do capoeirista. Longe de ser uma prática exclusiva de um grupo homogêneo, a roda de capoeira, hoje, é um microcosmo da sociedade global. Ela se tornou um espaço de acolhimento e crescimento para indivíduos de todas as idades, profissões e origens, rompendo barreiras e desmistificando preconceitos arraigados. A visão da capoeira como um universo restrito a jovens do sexo masculino, por exemplo, é um resquício de um passado que já não se sustenta. Atualmente, vemos a participação vibrante de crianças e adolescentes de ambos os sexos, que encontram na capoeira não apenas uma atividade física, mas um meio poderoso para o aprimoramento pessoal. A disciplina, o respeito às hierarquias, a coordenação motora e o estímulo à criatividade e à musicalidade moldam cidadãos mais conscientes e equilibrados desde cedo.
Um dos mais marcantes avanços da capoeira no século XXI é a vibrante presença da mulher, que vem desconstruindo estereótipos e conquistando seu espaço de protagonismo. Se outrora a participação feminina foi marginalizada ou menos visível, hoje a trajetória das mulheres na capoeira é de constante crescimento, marcada por conquistas significativas e superação de desafios. Vemos um número cada vez maior de praticantes, professoras e mestras que, com sua ginga, força e dedicação, enriquecem a arte-luta. Movimentos como “Capoeira Mulheres” ou “Ginga das Minas” surgem para fortalecer essa presença, promover a união e dar voz às praticantes, garantindo que a capoeira seja um espaço de acolhimento e empoderamento para todos, sem distinção de gênero.
Tenho observado que a capoeira tem se revelado um refúgio de bem-estar para a terceira idade. Contrariando a ideia de que é uma prática demasiadamente exigente, mestres, contramestres, professores e educadores adaptam os movimentos focando nos benefícios da flexibilidade, do equilíbrio, da memória e da socialização. Para muitos idosos, a capoeira representa uma redescoberta do corpo e da mente, combatendo o sedentarismo e promovendo uma qualidade de vida notável. Mais do que uma atividade individual, a capoeira tem se consolidado como um ponto de encontro para famílias inteiras. Pais, filhos, avós – gerações se unem na mesma roda, compartilhando o aprendizado, a energia e a alegria. Essa dinâmica familiar fortalece laços, promove a cumplicidade e cria memórias afetivas duradouras, tornando a capoeira um elo que transcende o espaço da academia.
Reforçando seu papel como instrumento de formação, a capoeira tem se consolidado cada vez mais no campo da educação formal. Longe das academias, ela encontra espaço nas escolas, sendo incorporada ao currículo escolar, sobretudo nas aulas de Educação Física, como um meio de promover a coordenação motora, o ritmo e a disciplina. Mais do que isso, a capoeira é uma ferramenta relevante para a valorização da cultura afro-brasileira, cumprindo um papel fundamental na implementação da Lei 10.639/03. Esta legislação torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, e a capoeira, com sua rica história de luta e sua manifestação multifacetada (luta, dança, música, filosofia), oferece um caminho vivo e envolvente para que crianças e jovens se conectem com suas raízes e compreendam a formação cultural do Brasil.
De forma cada vez mais notória, a capoeira atrai profissionais e empresários das mais diversas áreas. Longe dos escritórios e das pressões do mundo corporativo, eles buscam na prática um contraponto essencial: o equilíbrio entre corpo e mente, a disciplina que se reflete na vida profissional, a expressão criativa que liberta e o alívio do estresse. A roda se torna um santuário onde hierarquias externas se dissolvem, unindo todos na busca por aprimoramento e autoconhecimento. Essa vasta gama de profissões entre os praticantes é um testemunho irrefutável do profundo valor intrínseco da capoeira. No Brasil e ao redor do globo, a capoeira é abraçada por advogados que buscam no gingado uma via para a descompressão e o foco, por juízes que encontram na disciplina da roda um contraponto à rigidez dos tribunais, e por profissionais da dança, atores e músicos, que reconhecem a capoeira como uma das mais ricas e autênticas formas de expressão corporal e performance. No universo acadêmico e da comunicação, professores de diversas disciplinas incorporam os princípios da capoeira em suas metodologias. Jornalistas e publicitários encontram na capoeira não só uma fonte de histórias inspiradoras e um escape para a criatividade, mas também um modelo de comunicação não verbal e estratégica.
Enquanto isso, empresários e empreendedores utilizam a estratégia do jogo para aplicar em seus negócios. A força física e mental exigida atrai profissionais da segurança e educadores físicos, que veem na capoeira um complemento para o desenvolvimento motor e a performance corporal, assim como fisioterapeutas, para quem a prática auxilia na recuperação e prevenção de movimentos. Além disso, a expressão artística e a liberdade presentes na capoeira ressoam com a criatividade de tatuadores, que encontram inspiração em seus movimentos e simbologias. A complexidade do corpo e da mente, aliadas à interconexão social, seduz médicos, enfermeiros e psicólogos, que testemunham em primeira mão os benefícios terapêuticos, o bem-estar e o impacto na saúde mental que a prática proporciona. Engenheiros encontram na precisão e na lógica dos movimentos um desafio instigante, e até mesmo políticos buscam na capoeira um elo com a cultura popular e uma forma de se conectar com a comunidade. Essa ampla composição da comunidade capoeirista é a prova cabal de que a capoeira não só superou sua marginalização, mas floresceu como um fenômeno cultural universalmente acessível e enriquecedor, uma pedagogia viva, um sistema de valores e uma ferramenta de autoconhecimento que ressoa com as necessidades e aspirações de pessoas em todas as carreiras. Essa arte é a materialização de uma arte que, ao longo de sua história, soube se adaptar e se reinventar, provando que seu lugar é no coração de uma sociedade plural.
Para além dos notórios benefícios físicos, a capoeira tem se revelado uma potente ferramenta no campo da saúde mental, atuando como uma verdadeira prática terapêutica. O engajamento na roda e o aprendizado de seus movimentos, cantigas e ritmos proporcionam um ambiente propício para a prevenção da ansiedade e da depressão, promovendo o alívio do estresse e o fortalecimento da autoestima e da autoconfiança. Profissionais da área da psicologia têm testemunhado e utilizado a capoeira como um recurso clínico complementar, observando como a disciplina, o convívio social, a expressão corporal e o foco necessários à prática contribuem para a melhoria do bem-estar emocional e para o fortalecimento pessoal. A roda, nesse contexto, torna-se um santuário onde a mente encontra equilíbrio e o indivíduo se reconecta consigo e com o coletivo.
A capoeira é uma arte que transcende o movimento físico, uma manifestação cultural completa em que a música desempenha um papel central e insubstituível. Os instrumentos da capoeira não são meros acompanhamentos, são a própria alma da roda ditando o ritmo, a energia e até mesmo o tipo de jogo a ser desenvolvido. Cada instrumento possui uma origem, um som característico e um lugar específico na hierarquia da bateria, contribuindo para a magia e a complexidade dessa manifestação afro-brasileira. A orquestra da capoeira, conhecida como "bateria", é composta por um conjunto de instrumentos que, em sua maioria, tem raízes profundas na cultura africana e afro-brasileira: o berimbau (gunga, médio, viola), o atabaque, o pandeiro, o agogô e o reco-reco. A hierarquia é clara; com o berimbau gunga no topo, ditando o ritmo-mestre e liberando o jogo. O instrumento mais acessível, as palmas, fortalecem o compasso e energizam os jogadores, dividindo-se entre "palmas quebradas" (sincopadas, para jogos mais lentos e maliciosos da Capoeira Angola) e "palmas inteiras" (no tempo, para ritmos mais rápidos e diretos da Capoeira Regional). O coro é a voz coletiva, puxada pelo mestre e respondida por todos, energizando e conectando os participantes, além de veicular a história e filosofia da capoeira.
No coração da roda de capoeira, a voz e o ritmo das cantigas são tão fundamentais quanto o som dos instrumentos, cada uma desempenhando um papel específico na dinâmica e na atmosfera do jogo. As ladainhas, longos cantos entoados solitariamente pelo mestre ou um capoeirista experiente no início da roda, são verdadeiras narrativas que introduzem o jogo, contam histórias de mestres, rememoram o passado ou transmitem a filosofia da capoeira, preparando mentalmente os participantes. Uma vez iniciada a roda, predominam os corridos, cantos mais curtos e responsoriais, em que o solista puxa uma frase e o coro responde. São eles que mantêm o ritmo e a energia do jogo, incentivando os capoeiristas, narrando o que acontece na roda ou simplesmente celebrando a prática. Há também as quadras, de quatro versos, e os cantos de louvação, frequentemente utilizados em momentos de celebração e formação, como batizados e trocas de corda, homenageando figuras importantes e a própria arte. Essa riqueza melódica e lírica não apenas acompanha o movimento, mas o guia, o inspira e o carrega de significado.
A capoeira, em sua rica trajetória, desenvolveu-se em diferentes tipos e estilos, cada um com características marcantes e filosofias distintas. A Capoeira Angola, considerada a mais antiga e tradicional, tem em Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha) seu principal sistematizador e defensor. Seu jogo é marcado pela malícia, fluidez e movimentos próximos ao chão, com ritmos lentos e ladainhas. Já a Capoeira Regional, criada por Mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado), surgiu com uma proposta mais objetiva e esportiva, caracterizada por movimentos rápidos e contundentes, com ritmos mais acelerados como o São Bento Grande. A Capoeira Contemporânea, por sua vez, é uma fusão de elementos de ambos os estilos, buscando a adaptabilidade e a liberdade de expressão, sendo a vertente mais praticada globalmente hoje. Estilos de toques específicos, como o Benguela e o Iúna, ambos desenvolvidos por Mestre Bimba, exemplificam a profundidade metodológica, com o Benguela sendo um jogo mais cadenciado e o Iúna, um ritmo solene e acrobático reservado aos mestres e formados.
Os golpes da capoeira são o cerne de sua faceta combativa, um complexo sistema de ataque, defesa e contra-ataque que se disfarça na fluidez da dança e na malícia do jogo. Sua origem remonta às necessidades de defesa dos africanos escravizados, baseados em movimentos animais, danças e na criatividade na luta pela sobrevivência. Embora não haja uma catalogação rígida, os golpes são agrupados em categorias. A ginga é o movimento fundamental, a base de tudo. As esquivas (como Cocorinha, Queda de Quatro, Negativa e Rolê) são movimentos defensivos para desviar de ataques. Os golpes de linha (como a Bênção, Ponteira e Martelo) são diretos. Os golpes rodados (como Meia-lua de frente, Queixada e Armada) utilizam a rotação para potência. Rasteiras e Tesouras focam no desequilíbrio e derrubada. As Cabeçadas são golpes de contato direto, e os golpes acrobáticos e floreios (Aú, Ponte, Macaco) combinam força e expressão. A beleza dos golpes reside em sua integração fluida, em que a malícia e a estratégia se unem ao ritmo da música para transformar a luta em dança e a dança em luta.
A capoeira, em sua essência, não existe isolada, mas como parte de um rico universo de manifestações culturais afro-brasileiras, compartilhando espaços, simbolismos e tradições como o Samba de Roda, o Samba de Caboclo e o Maculelê. O Samba de Roda é uma expressão musical e coreográfica de origem africana que frequentemente encerra as rodas de capoeira, canalizando a energia do jogo em uma celebração coletiva. Com suas palmas, cantos responsoriais e movimentos envolventes, representa a alegria, a sensualidade, a ancestralidade e a união comunitária. Nesse contexto, as mulheres costumam “comprar o jogo” com umbigadas, gesto ancestral de invocação e fertilidade, enquanto os homens, por vezes, respondem com cabeçadas ou rasteiras simbólicas, compondo um jogo dançado repleto de malícia e improviso. Cada batida do atabaque atua como um comando, um chamado que deve ser lido e incorporado pelos corpos, revelando a profunda ligação entre ritmo e corporeidade.
Já o Samba de Caboclo, de forte matriz afro-indígena, carrega um caráter ainda mais ritualístico e espiritual. Cultuado em diversas comunidades tradicionais, esse samba evoca as entidades conhecidas como caboclos, figuras ancestrais que representam a fusão simbólica entre o mundo africano e o indígena. Sua presença em rodas de capoeira ou em eventos associados funciona como uma forma de reverência, de invocação de proteção e força espiritual. A movimentação vigorosa e vertical do samba de caboclo contrasta com a ginga rasteira da capoeira, mas ambas compartilham o mesmo solo simbólico da expressão cultural e identitária.
O Maculelê, por sua vez, é uma dança dramática de origem afro-brasileira que se distingue pelo uso de bastões de madeira (grimas), percutidos ritmicamente. Em certas performances, utilizam-se também facões, intensificando o impacto visual e simbólico do ato. A dança, que simula o combate, exige ritmo, agilidade e teatralidade, e muitas vezes é incorporada ao treinamento e às apresentações dos grupos de capoeira, complementando a formação do praticante. Essas manifestações, embora distintas em forma, estão unidas por raízes históricas e espirituais comuns, reafirmando a riqueza, a diversidade e a interconexão das tradições afro-brasileiras dentro do universo da capoeira.
A “Volta ao mundo”, na capoeira, representa uma pausa estratégica e um ritual de profunda ressonância histórica. Distanciando-se de uma simples interrupção do jogo, este movimento em círculo carrega consigo a essência da ancestralidade e da luta cultural. Executada, em sua maioria, no sentido anti-horário, a “Volta ao mundo” é a manifestação corporal do regresso às origens, do reencontro com os antepassados.
Nesse breve interlúdio, os capoeiristas se desconectam do embate imediato para se reconectarem com as raízes que nutrem sua arte. É um momento de introspecção e reverência, em que a força e o conhecimento dos que vieram antes são invocados, não apenas para aprimorar a estratégia de jogo, mas para reafirmar a identidade e a continuidade da capoeira como um legado cultural. Essa busca na ancestralidade concede a força necessária para prosseguir o jogo com a sabedoria dos mais velhos, mantendo viva a chama de uma tradição enraizada na história.
O movimento circular e anti-horário, portanto, não é um mero capricho coreográfico. Ele remete a uma cosmologia ancestral, na quais o tempo e o espaço se curvam para permitir que o presente se encontre com o passado. Trata-se de um rito que reforça a capoeira como um universo simbólico, nas quais cada movimento, cada toque de berimbau e cada canto ecoam a história e a força de um povo. A “Volta ao mundo” é, em sua essência, a reafirmação de que a capoeira é mais que luta e dança: é um diálogo ininterrupto com a memória e a espiritualidade de suas origens africanas.
A capoeira, com sua ginga envolvente e ritmo contagiante, ultrapassou as fronteiras brasileiras para se firmar como um fenômeno verdadeiramente global. O que antes era uma prática restrita a comunidades específicas no Brasil, hoje floresce em academias, parques e praças de cidades tão diversas quanto Madrid, Tóquio, Nova Iorque, Paris, Berlim e Joanesburgo. Com uma presença que se estende por mais de 160 nações, alcançando milhões de praticantes, ela se consolidou como uma das manifestações culturais brasileiras de maior difusão no cenário internacional. Essa universalidade de sua linguagem corporal e cultural é um testemunho de sua capacidade de cativar e integrar pessoas de diferentes etnias, idiomas e tradições. Mais do que uma mera exportação cultural, a capoeira tornou-se uma poderosa ponte para o intercâmbio. Impulsionada por mestres e capoeiristas brasileiros que viajam pelo mundo, e por uma profusão de eventos internacionais, workshops e encontros, ela é, em si, um embaixador da brasilidade, levando a riqueza da música, da dança, da luta e da filosofia de vida brasileira para os quatro cantos do mundo. Para muitos, a capoeira é o primeiro contato com a cultura do Brasil, despertando o interesse pela língua portuguesa, pela culinária e pelas tradições do país. Paralelamente, essa globalização não é um processo unilateral. A capoeira absorve e reflete as novas perspectivas e influências dos locais onde se estabelece, gerando um diálogo dinâmico que, por sua vez, enriquece a própria prática no Brasil. Essa troca contínua, impulsionada pelo movimento de mestres e praticantes, alimenta a evolução ininterrupta dessa arte ancestral. No entanto, essa jornada global não está isenta de desafios. A adaptação da capoeira a diferentes contextos culturais exige um delicado equilíbrio. Manter a essência de suas raízes africanas e brasileiras, seus rituais, sua musicalidade e sua filosofia, enquanto se integra a novas realidades sociais e culturais, é uma tarefa complexa. A interpretação de seus fundamentos pode variar, e a comercialização da capoeira levanta questões sobre a preservação de sua autenticidade. O desafio reside em permitir que a capoeira continue a crescer e se adaptar, sem que perca a profundidade histórica e espiritual que a torna única. É nesse contínuo processo de diálogo entre o local e o global que a capoeira reafirma sua capacidade de se renovar, mantendo-se fiel à sua alma enquanto abraça o mundo.
A capoeira do século XXI, em sua constante evolução, também se adaptou e prosperou no ambiente digital, abraçando a tecnologia como um meio de expansão e ensino. Sua presença é marcante em diversas plataformas digitais: vídeos no YouTube e em outras redes sociais permitem que técnicas, rodas e performances alcancem milhões de pessoas em todo o mundo. As aulas online democratizaram o acesso ao aprendizado, permitindo que mestres e alunos se conectem além das barreiras geográficas. Além disso, inspira jogos eletrônicos e vem sendo explorada em projetos inovadores que utilizam realidade virtual ou aplicativos específicos para auxiliar no ensino da ginga, dos toques de berimbau e dos movimentos, tornando o aprendizado mais interativo e acessível a novas gerações e públicos, reafirmando sua capacidade de se reinventar sem perder sua essência.
Apesar de ser um pilar fundamental da cultura brasileira, reconhecida globalmente como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, a capoeira ainda luta para obter o apoio financeiro e a valorização que merece por parte dos governos no Brasil e, em muitos casos, no exterior. A falha não reside na falta de reconhecimento formal, mas na discrepância entre esse reconhecimento e a efetiva implementação de políticas públicas e destinação de verbas. A carência de verbas públicas para a capoeira pode ser atribuída a uma série de fatores complexos e interligados, como a burocracia excessiva, e inacessibilidade dos editais para a maioria dos mestres e grupos, a descontinuidade das políticas públicas a cada mudança de gestão, a falta de consulta e participação efetiva da comunidade na elaboração dessas políticas, além do preconceito e estigma remanescente que ainda influenciam a percepção de gestores. A desvalorização dos mestres como profissionais e a insuficiência de recursos destinados à cultura popular de forma geral também contribuem para esse cenário. Para que a capoeira seja verdadeiramente valorizada, é preciso que os governos não apenas reconheçam seu valor simbólico, mas invistam de forma estratégica e contínua, desburocratizando o acesso a recursos, ouvindo a comunidade e garantindo que os mestres, os verdadeiros guardiões desse patrimônio, possam dedicar-se plenamente à sua arte.
A grandeza e a influência de um grupo de capoeira e de seus mestres transcende o mero número de praticantes ou a presença em múltiplos países. Elas se manifestam na qualidade do ensino, na profundidade filosófica, na preservação e inovação da arte, na dedicação à comunidade e na formação de novos graduados de alto nível. É sob essa ótica que o trabalho do grupo liderado pelo fundador Mestre Capixaba (Rogerio Sarlo de Medeiros Filho) do Espírito Santo e pelo notável Mestre Gororoba (Ari Rodrigues Filho) de Porto Alegre, se destaca no cenário da capoeira. A própria sigla do grupo, A.C.A.P.O.E.I.R.A. (Associação Cultural Artística Popular Orientada ao Esporte e de Incentivo às Raízes Afro-brasileiras), já é um manifesto de seus propósitos e valores, indicando a natureza coletiva, cultural, artística, popular, esportiva e, crucialmente, seu compromisso com as raízes afro-brasileiras.
A trajetória do Mestre Gororoba é um testemunho vívido dessa persistência e seriedade. Negro, descendente de escravizados, ele iniciou sua jornada na capoeira aos 10 anos, jogando nas ruas e praças de Porto Alegre, onde teve seus primeiros contatos com a arte. Após a perda do pai, uma referência fundamental em sua vida, Mestre Nino Alves surgiu como figura crucial, ajudando a preencher o vazio e aprofundar seu envolvimento com a capoeira. Sem condições de pagar as aulas, Gororoba demonstrava seu afinco e dedicação faxinando a academia para custear seu aprendizado, um esforço que logo foi reconhecido. A força nefasta do preconceito, inclusive dentro da própria casa – onde sua mãe, neta de escravizados, inicialmente via a capoeira com estigma – foi superada ao longo dos anos, à medida que a capoeira transformava sua vida. Após mais de 50 anos de dedicação, formando-se com mestres como Nino Alves e o próprio Capixaba, consolidou-se como um capoeirista de notório saber, superando as turbulências da juventude e encontrando na arte um ponto de equilíbrio e um profundo enraizamento cultural.
A filosofia da A.C.A.P.O.E.I.R.A. é pautada na qualidade do aprendizado, não na quantidade de alunos. A preocupação em formar "pesquisadores, estudiosos, bons tocadores, bons cantadores, bons compositores" reflete um foco na excelência e na profundidade do ensinamento, garantindo que os capoeiristas desenvolvam corpo, mente e espírito. Um dos maiores indicativos da relevância de um mestre é sua capacidade de formar outros mestres, perpetuando o saber. Mestre Gororoba, por exemplo, orgulha-se de ter formado seu primeiro mestre, o Mestre Lambão (Luís Oliveira) de Alvorada, cujo legado é continuado e ampliado. A transmissão de valores e a vivência da capoeira também se manifestam na família do Mestre Gororoba, com sua esposa Priscila Campos (formanda) e sua filha Victória Campos Rodrigues (monitora), que vivenciam e perpetuam a arte, demonstrando como essa disciplina se enraíza e se transmite através das gerações. De forma semelhante, a família do Mestre Lambão vive a capoeira intensamente com sua esposa Maitê Disconzi (formanda e parceira de treino) e suas filhas Janaína e Mayara Oliveira (também praticantes e, a última, graduada, bicampeã mundial de capoeira), consolidando a ideia de como a arte se estende e se fortalece nas diferentes gerações.
A influência da A.C.A.P.O.E.I.R.A. e de seus mestres ressoa além das fronteiras gaúchas. A atuação de alunos formados pelo grupo em outros países atesta a qualidade de sua formação. Um exemplo notável é Saymon Freitas (professor), que hoje vive e trabalha com capoeira em Madrid, na Espanha, atuando como Personal Trainer e especialista em movimento. Sua filha, Yasmin Ferreira, também segue os passos na capoeira. A jornada de Saymon em terras estrangeiras reforça o impacto global do trabalho desenvolvido em Porto Alegre. O engajamento social é outro pilar do grupo, demonstrado pela ligação com projetos sociais que levam a capoeira a crianças e comunidades. Embora esteja classificada como "Contemporânea" no cadastro do IPHAN, a A.C.A.P.O.E.I.R.A. mantém fortes laços com a tradição, dialogando com as diversas linhagens da capoeira e garantindo que a arte, em sua constante evolução, nunca perca a essência de suas raízes. A A.C.A.P.O.E.I.R.A. e seus líderes, Mestre Capixaba e Mestre Gororoba, são, inegavelmente, um grupo e mestres de grande importância e influência, representando a excelência e a dedicação à arte da capoeira.
O RUBI E O DIAMANTE
(Mestre Muralha)
O diamante se juntou ao rubi,
Vermelho e branco se uniram assim.
Lutou, deu sangue, buscou sabedoria
E no branco da paz, encontrou harmonia.
Vermelho é o sangue da guerra que travou,
Pra capoeira, sua vida entregou.
Mais que merecido, grande capoeira,
Mestre Gororoba, sua hora chegou.
O diamante se juntou ao rubi,
Vermelho e branco se uniram assim.
Lutou, deu sangue, buscou sabedoria
E no branco da paz, encontrou harmonia.
E o branco representa a paz,
A harmonia que você conquistou.
Rodou o mundo com sua capoeira,
Passando ensinamentos, conhecimento e valor.
O diamante se juntou ao rubi,
Vermelho e branco se uniram assim.
Lutou, deu sangue, buscou sabedoria
E no branco da paz, encontrou harmonia.
O diamante demonstra a transparência
E o rubi, a consistência.
Juntando os dois, isso eu posso provar,
É tudo que precisa para um mestre se formar.
O diamante se juntou com o rubi,
Vermelho e branco se uniram assim.
Lutou, deu sangue, buscou sabedoria
E no branco da paz, encontrou harmonia.
A canção "O Diamante e o Rubi", interpretada na voz do Mestre Muralha, é uma homenagem lírica e profunda à trajetória do Mestre Gororoba, confirmando-se como uma dedicatória explícita a ele. A letra tece uma narrativa rica em simbolismo, utilizando as cores e qualidades das pedras preciosas para descrever os pilares da jornada de um capoeirista até o reconhecimento máximo de mestre. A repetição do refrão "O diamante se juntou ao rubi / Vermelho e branco se uniram assim / Lutou, deu sangue, buscou sabedoria / E no branco da paz encontrou harmonia" é o cerne da mensagem. Aqui, o vermelho e o branco não são apenas cores, mas um elo direto com as cores da corda de Mestre, simbolizando a consagração e o ponto culminante de uma vida dedicada à arte. O "Vermelho é o sangue da guerra que travou / Pra capoeira sua vida entregou" representa a intensidade, a paixão e os sacrifícios. A frase "Mestre Gororoba sua hora chegou" é um reconhecimento direto e emocionado da conquista da mestria. O "branco representa a paz / A harmonia que você conquistou", indicando o equilíbrio e a sabedoria adquirida. A canção ainda afirma que "O diamante demonstra a transparência / E o rubi demonstra a consistência", sintetizando que a união dessas qualidades – integridade e dedicação inabalável – é tudo o que se precisa para um mestre se formar. Por fim, "Rodou o mundo com sua capoeira / Passando ensinamentos, conhecimento e valor" ressalta o impacto internacional do Mestre, espalhando não apenas a técnica, mas os valores e a filosofia da capoeira.
A música "O Diamante e o Rubi" é, portanto, uma biografia poética cantada que celebra a jornada árdua e gratificante do Mestre Gororoba, destacando a fusão de luta e paz, de dedicação e sabedoria, e das qualidades fundamentais que forjam um líder e um guardião do saber.
Por Laercio Lacerda,
Jornalista, escritor e capoeirista.
Cristina Muswieck
Revisora de texto
